É essa subserviência que fez com que Assange fosse submetido a um tribunal de fancaria, em que seus advogados mal puderam se manifestar, que – como sabiam até os rouxinóis da Praça Trafalgar, se algum ainda houver – o condenou a ser enviado para as garras do Estado Profundo americano. Vê-se como são fartas tais cortes pelo mundo hoje em dia; há até as que prendem parlamentares por parlapatices idiotas aqui ou ali. Assange, que já ou anos literalmente preso na embaixada, até que se esgotem os recursos e seja mandado, quiçá enrolado em correntes, para os EUA, está sendo mantido em condições tremendamente insalubres numa cadeia destinada a criminosos de altíssima periculosidade.

Ora, o que Assange fez é a mais pura definição de jornalismo, mais ainda de jornalismo democrático: ele levou a público a verdade (ninguém jamais o acusou de ter publicado notícias falsas; as que publicou eram sempre verdadeiras, tão verdadeiras quanto desagradáveis aos donos do poder) acerca dos malfeitos dos poderosos. Se se cala a imprensa, como se há de saber do que é tramado e executado nos bastidores do poder?! Se não há imprensa, como poderia o público saber que este careca faz aquela barbaridade? É importantíssimo para a democracia que haja uma imprensa investigativa séria e, mais ainda, livre para apresentar a verdade, doa ela a quem doer. Quando se cala a imprensa cala-se a cidadania, e quando se cala a cidadania extingue-se a democracia.

Enquanto Assange estiver preso, seja ainda na Inglaterra, seja em Guantánamo ou em qualquer outro gulag ocidental para o qual for enviado, “democracia” persiste a ser palavra vazia

É menos mau bater no peito e declarar-se em alto e bom som uma autocracia, uma ditadura, como fazem os russos ou chineses; ao menos ninguém ali tem como persistir na ilusão de que seja o povo, não uma récua de morcegos sanguessugas, que está no poder. Já num país como os EUA ou tantos outros em que fingimos da boca para fora que ainda há democracia, o que se tem é um regime da mentira, um regime em que uma fina fachada de democracia, como numa aldeia Potemkin, esconde uma glabra e lustrosa autocracia. Uma ditadura, para dar nome aos bois. É esta a situação dos EUA, cada vez mais preocupante para seus próprios cidadãos, que veem agora voltada contra eles a máquina de matar que desde o fim da Guerra da Secessão, quase 200 anos atrás, voltara-se apenas contra gente morena em terras distantes.

Se o país que mais se arrota democrático não apenas persegue jornalistas como o faz no exterior, usando e abusando de seus títeres europeus, que fim levou o Mundo Livre de que tanto se falava tempos atrás? O que temos hoje em dia é a volta do poder nu e cru da força bruta, em que manda quem pode e obedece quem tem juízo, e isso não só aqui, mas no mundo. Ainda que seja verdade o famoso dito de De La Rochefoucauld, segundo o qual “a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”, de que adianta que haja apenas hipocrisia, ou seja, apenas vício, tendo sido a virtude reduzida à hoje esvaziada palavra “democracia”? Se tanto faz quem ganhe as eleições americanas, pois quem manda mesmo é o Estado Profundo, se tanto faz que eleições sejam fraudadas onde quer que se seja, pois o que interessa é só que se bata no peito e se proclame “democrático”, qual a diferença da nossa situação em relação àquela dos países comunistas da antiga Cortina de Ferro? Afinal, diziam-se todos não apenas “democráticos”, mas o faziam em dose dupla: eram “repúblicas democráticas populares”, vejam bem os senhores que coisa mais linda. Até, claro, que olhássemos além das brilhosas fachadas de Potemkin e víssemos a KGB, os gulags e tudo o mais. Até que percebêssemos que o que fosse dito em particular entre amigos poderia ser motivo de persecução criminal, congelamento de bens e mesmo prisão. Até, em suma, que ficasse claro que “democracia” não era ali mais que um amuleto verbal, um talismã vazio. Uma hipocrisia. Uma fachada tênue de falsa virtude a esconder o vício.

É esta hoje a situação do Ocidente, sem que com isso tenha melhorado muito a do Oriente. A China hoje de comunista só tem o nome, mas de democracia nem o nome tem. A Rússia hoje – como outrora com os czares – orgulhosamente proclama-se autocrática. Só por estas bandas, neste hemisfério, é que encontramos fenômenos como o americano, de países que nos proclamamos democracias sem que na verdade tenha o povo voz. Enquanto Assange estiver preso, seja ainda na Inglaterra, seja em Guantánamo ou em qualquer outro gulag ocidental para o qual for enviado, “democracia” persiste a ser palavra vazia, mero flato vocal a esconder a mentira autocrática que, na contramão do resultado da Guerra Fria, veio ter deste lado do Atlântico sem que ninguém a percebesse até ser tarde demais.