Num de seus eios cotidianos, Jan começou a seguir uma mulher e esqueceu o manuscrito de seu romance Rumores, por descuido, em um ônibus. A polícia, por meio dele, chegou ao endereço de sua mãe, prendendo-a em virtude de sua atividade editorial clandestina. Betka, a mulher que ele havia seguido, foi em sua casa em busca de uma cópia de samizdat, e eles se tornaram próximos. Ela o fez perceber que, continuando no isolamento e na obscuridade, estaria fatalmente à mercê de um sistema feito para esmagá-lo. O melhor seria sair da obscuridade, fazer-se conhecido nos meios dissidentes e apresentar a sua causa para a imprensa internacional, para que a condenação de sua mãe fosse onerosa para o regime.
Jan saiu do isolamento e conheceu intelectuais, como ele, perseguidos e marginalizados, que o ajudaram a compreender a sua situação e a inseri-la no drama espiritual de sua nação. Mas as relações entre dissidentes e representantes do mundo oficial eram mais estreitas do que se poderia supor: um amigo poderia ser um rival, e um padre confessor poderia ser um instrumento do regime para obter informações privilegiadas.
Scruton teve o mérito de explorar essas ambiguidades na relação amorosa entre Jan e Betka, unindo o destino coletivo e o individual num drama vivo. Jan nutria suspeitas a respeito de sua namorada, que parecia ocultar-se mesmo quando se revelava. O totalitarismo penetrava em todos os setores da sociedade e em todos os recantos da alma, e todos recuavam, defensivamente, para um submundo pessoal e incomunicável.
A onipresença do regime assim foi resumida por um dos personagens, um padre dissidente: “onde dois ou mais estiverem reunidos em outro nome que não o meu, eu estarei no meio deles”. A ocultação tornou-se uma prática generalizada. Mas o totalitarismo, como uma contrafação do divino, queria ir além: queria criar a sua própria verdade. Como observou outro personagem, o comunismo não opera apenas por meio da falsificação, mas visa sobretudo a abolir a distinção entre a verdade e a mentira – e produz esse efeito em cada alma que vive sob o seu jugo.
Mas nem por isso os dissidentes e os representantes das democracias ocidentais pareciam superiores. Professores interessados no comércio sexual do Leste Europeu (o tour des blondes) vinham apresentar a “máquina dos direitos humanos”, promovendo o assassinato de bebês no ventre das mães como um direito essencial. Os próprios dissidentes costumavam ser (como muitos conservadores, hoje, no Brasil), humanamente pobres – incompetentes que se levavam demasiado a sério e se sentiam superiores por sua mera oposição ao regime.
Já o mundo democrático para onde Jan emigrou, depois da abertura, não oferecia senão uma riqueza material espiritualmente vazia. Tanto o mundo comunista quanto o ocidente democrático são apresentados como o resultado de um mesmo embotamento que anula os contornos individuais e reduz tudo a lugares comuns. Sob este aspecto, a única diferença é que o comunismo, mais agressivo, é um “kitsch com dentes”.
Memórias de Underground é espantosamente atual. É uma advertência sobre a proximidade do fantasma totalitário: estamos mais próximos do que pensamos da existência subterrânea, cinzenta e isolada de Jan Reichl (uma condição que permanece a mesma, na Praga comunista ou em Washington, na era do smartphone). Por outro lado, é uma inspiração: para buscar a verdade – que é sempre perseguida ou ameaçada – e trazê-la à luz do dia, é preciso recolher-se da agitação e da superficialidade, refugiar-se nas catacumbas e perscrutar o fundo misterioso da nossa alma. Que o dissidente dos nossos dias – às voltas com um totalitarismo cada vez mais invasivo – possa servir-se deste belo romance como de um espelho para reconhecer a si mesmo, escapar da superficialidade kitsch e, com a ajuda do patrimônio espiritual comum, sondar as potencialidades mais ricas da própria alma.